A democrática Ordem do Mérito Cultural 2011

Batidas compassadas de surdo. Assim, esquisita, sincopada, alegremente soturna, toca dentro de mim a música da despedida do Recife. A farewell song por dois dias, nada mais do que isso, vividos com total intensidade, quando fui receber a Comenda da Ordem do Mérito Cultural, in memoriam, por minha mãe, Zuzu Angel. Não pela primeira vez, cumpro esta missão, sempre molhada com choro, de ir reverenciá-la post mortem. A anterior foi a Comenda do Rio Branco, entregue por Lula presidente. São todas medalhas muito pomposas, cruzes douradas e com esmalte, colares, faixas de gorgurão terminando em rosetas, bonitas demais. Minha mãe ficaria tão orgulhosa! Em vida, ela mesma inventou sua condecoração: um anjo de biscuit, carregando uma braçada de flores, que ela levava ao pescoço nas ocasiões especiais, representando seu filho morto, e na cintura uma carreira de crucifixos, de todos os tamanhos e formatos, representando o suplício de Stuart

Mas ir ao Recife teve muitos outros significados. Ao pisar na rampa do Hotel Atlante, reencontrei Graça Lago, a filha de Mario Lago, outro homenageado in memoriam. O grande ator, um bom amigo de meu passado de colunista da área de TV/Teatro/Cinema e atriz. E assim foram os sucessivos reencontros na “Veneza brasileira”, back to the past. Revi Sergio Mamberti, do Ministério da Cultura, lembrando-me tanto de minha tia saudosa, Virginia Valli, sua amiga próxima e cara. O mesmo fez João das Neves, outro premiado, com quem Virginia, atriz-titiriteira-escritora-editora, trabalhou no Teatro Jovem e no Opinião. E o neto do estimado fabuloso ator Paulo Gracindo, outro “comendador” in memoriam. E, lá, os Dzi Croquetes remanescentes, fazendo-me voltar no tempo ao Wagner Ribeiro, amigo de minha geração teatral, fundador do grupo, cujo filme agora quer concorrer ao Oscar de melhor documentário. Wagner é outra parte da história de Zuzu, pois, tão talentoso, foi também artesão e criava para mamãe cintos e acessórios de couro maravilhosos pirografados com desenhos bem da época, anos 60, 70, grande moda. Ah, o Wagner! Que doçura, quanta suavidade! Que saudade! Em sua casa fofa de Santa Teresa, panos indianos, pura sensibilidade. Não está mais entre nós. Mas estavam lá o Claudio Tovar, o Ciro Barcelos, o Bayard Tonelli recebendo o prêmio conferido ao grupo Dzi

A lista dos agraciados com a Ordem Do Mérito Cultural neste 2011 distinguiu-se de todas as demais dos anos anteriores, desde que ela foi instituída em 1995, no Governo Fernando Henrique Cardoso. Pude fazer uma atenta comparação. Nos anos precedentes, aos nomes ilustres e reconhecidos de nossa vida cultural somavam-se os de políticos, grandes empresários, banqueiros, personalidades midiáticas, militares, religiosos, personalidades das estruturas de poder, famosos. Neste ano, ficou evidente a preocupação em premiar personalidades de todo o país, a fama não foi prioridade, a cultura popular foi muito prestigiada, iniciativas importantes porém pouco conhecidas foram contempladas e os mortos não foram esquecidos. Daí que, sob a égide de Pagu, personalidade símbolo desta entrega, receberam suas medalhas, da artista plástica carioca Adriana Varejão, das mais cotadas no mercado internacional da arte contemporânea, ao jornalista mineiro Afonso Borges, criador do projeto Sempre um Papo; da precursora do movimento feminista a escritora Ana Montenegro, in memoriam, ao músico Antonio Nóbrega (curiosamente, o pernambucano foi o único ausente, mesmo o evento acontecendo no Recife); do mestre Apolonio Melonio, do Bumba-meu-boi das Flores, ao ator baiano Antonio Pitanga; da Associação Capão Cidadão, de dança, do Capão Redondo, aos artesão de Santana de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha

E mais a Beth Carvalho, no samba, o Betinho, in memoriam (quantos aplausos!), o escritor mineiro Campos de Carvalho, in memoriam, bem como o pernambucano Capiba (e a plateia, comovida ao lembrá-lo, cantarolou um frevo dele inteirinho, foi de chorar de tão lindo). A Casa Wariró, dos produtos indígenas do Rio Negro, o ator premiado Chico Diaz, a notável Clarice Lispector, in memoriam (e o Teatro Santa Isabel, onde foi a premiação, vibrou com a menção do nome), a professora de antropologia do Maranhão, Claudett Ribeiro, a Central Única das Favelas do Rio, o seleiro Espedito, do sertão do Cariri, o Festival de Dança de Joinville, o Festival Santista de Teatro. O gravador gaúcho Glênio Biachetti, o grupo carioca Dançando Para Não Dançar, o Cumbuca, grupo de dança do Piauí, o Galpão, o cineasta Gustavo Dahl, in memoriam, o cineasta Héctor Babenco

Foi lembrada a poetisa Helena Kolody, foram premiados a atriz Ittala Nandi e o cantor Jair Rodrigues, e já não era sem tempo. João do Vale, in memoriam, assim como foi in memoriam a comenda ao diretor José Renato. O Santa Isabel vibrou quando foi mencionado o nome de Leila Diniz. A filha Janaína ficou feliz, feliz. Lelia Abramo, outra premiada in memoriam. Luiz Melodia condecorado. A Academia Brasileira de Letras, representada por seu presidente, Marcos Vilaça. A escritora Lygia Bojunga. O Maracatu Estrela de Tracunhaém. A representante do Memorial Unisinos, que reúne o patrimônio dos Jesuítas, obras raras, no Rio Grande do Sul, me perguntava, intrigada, como eram escolhindos os premiados, pois não imaginava como eles chegaram ao Unisinos, que guarda acervo preciosíssimo da Companhia de Jesus. Nelson Cavaquinho, in memoriam, e o filho estava lá para receber. O Pedreiro carioca que fez uma biblioteca em Tobias Barreto. Quinteto Violado, Teatro Tablado, a artista plástica Tereza Costa Rêgo. O grande nome do teatro do Pernambuco, Valdemar de Oliveira, in memoriam. O artista plástico Vik Muniz

E deixo para o fim o comendador in memoriam, o mais importante educador brasileiro, o ilustríssimo Paulo Freire, na mesa de cuja família tive o prazer de jantar, após a entrega do prêmio, no Palácio das Princesas, onde o governador Eduardo Campos recebeu, junto com a ministra Ana de Hollanda, os 300 convidados. Não fossem a viúva de Freire, Ana Maria Araujo Freire, acompanhada de seu filho, Ricardo, e de seus irmãos, Cristina e Lula, e eu não saberia que foi Maurício de Nassau quem fez construir o prédio do palácio tal e qual sua residência na Holanda, bem como e todo aquele entorno – o jardim com árvores frondosas, o rio cortando o terreno, a ponte, um paraíso cercado de prédios históricos e belos. Não saberia, também, que o palácio se chama Das Princesas porque era lá, naquele jardim tão belo, que Dom Pedro II gostava de levar suas filhas princesinhas para brincarem. Muito menos aprenderia que se chamam heliconias as flores que “gradeavam” a passarela que levava às mesas, onde o jantar foi servido ao ar livre. Uma revelação do Lula, cuja mulher adora botânica…

Antes de me despedir de vocês, um breve comentário sobre Ana de Hollanda, absolutamente plena, feliz e descontraída no exercício de seu ministério. No palco, ao lado da apresentadora-atriz Denise Fraga, Ana estava completamente à vontade, como que em seu habitat natural. Sem afetações. Vibrava tanto quanto a plateia ou cada um dos homenageados. Sem afetações nem falsas posturas/composturas de ocasião. Não estava ali uma burocrata. Estava Ana, Ana íntegra, Ana artista…

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Sergio Mamberti, Bayard Tonelli, Graça Lago, Claudio Tovar e o governador Eduardo Campos, na área externa do Teatro Santa Isabel, antes do início da premiação

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Hector Babenco, premiado com a Ordem do Mérito Cultural 2011, e o presidente da Funarte, Antonio Grassi

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As “senhoras” dos premiados 2011: Barbara Paz, do Babenco, e Sylvia Buarque, do Chico Diaz

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Antonio Pitanga, decididamente: o premiado mais elegante da noite, com seu terno branco, jaquetão, de risca de giz

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O filho de Nelson Cavaquinho

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Ricardo Araujo e Lula Araujo, enteado e cunhado do maior educador do Brasil Paulo Freire

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Denise Fraga, o governador Eduardo Campos e a ministra Ana de Hollanda, que recebeu, também ela, a importante comenda da Ordem do Mérito Cultural 2011

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